2.29.2004

Blogosfera
Não tenho a mínima das paciências para o género de reflexão sobre a blogosfera, a sua evolução e estado actual, o fenómeno e as suas consequências. Faz lembrar-me um excelente texto do Wim Wenders (On Film. Essays and conversations. faber and faber, 2001) intitulado “For (not about) Ingmar Bergman” em que ele começava por dizer que ia escusar-se a analisar ou interpretar os filmes de Bergman, pois eram aqueles que mais mereciam ser simplesmente vistos. Não quero, como é óbvio, comparar os blogs aos filmes de Bergman - os filmes de Bergman não se comparam com nada, estão acima disso -, mas, o facto é que quando vejo as análises e as tentativas de compreensão da blogosfera apetece-me muito deixar de a ela pertencer. A blogosfera, quando analisada na sua essência – um bando de gajos (e gajas) que gastam parte do seu tempo a debitar coisas para a Internet presunçosamente achando que as mesmas merecem ser lidas – é deprimente. Há tanta coisa escrita que não teremos tempo de ler, mesmo vivendo 100 anos, que se torna angustiante pensar que parte do pouco tempo que temos é passado a ler opiniões avulsas de quem, salvo raras excepções, pouco sabe daquilo sobre o que escreve. É verdade que há talento e de vez enquanto se descobre uma frase, uma imagem, uma visão que fica e que compensa as banalidades que nesse dia lemos. Mas para que isso seja bom, como é, torna-se fundamental não analisar a questão, limitarmo-nos a ler e escrever quando nos apetecer o que nos apetecer (excepto análises da blogosfera, claro). Outra coisa que me faz ficar deprimido por escrever blogs, é deparar-me com aqueles tipos (às vezes tipos que eu gosto de ler), que vem pedir desculpa por não terem escrito muito, ou pouco, ou nada, ou terem andado com muito trabalho, ou estarem a pensar em desistir ou em parar ou apagar ou passar a escrever uma vez por mês ou nunca mais, ou que vão de férias e pedem a nossa compreensão para o interregno, ou, pior ainda, os que comentam estes dizeres e apelam, criticam, agradecem ou anseiam. Deprime-me porque, uma vez mais, obriga-me a relativizar o “fenómeno”, a reduzi-lo à sua essência e a constatar o quão triste é achar que o que fazemos tem mais importância do que aquela que de facto tem, i.e pouca. Nas coisas que me deprimem na blogosfera incluo, naturalmente, esta coisa que agora escrevo, também ela parente das que acabo de considerar deprimentes. A maior humildade é a que reside no pudor em expor as nossas misérias.
Imagens Recorrentes




Hélio Oiticica
seja marginal, seja herói (1968)
Óscares
Nos Óscares, a parte que eu de longe mais gosto é o Óscar honorário e o lifetime achievement. Por um momento fala-se de cinema e somos poupados aos discursos politicamente correctos e/ou doméstico-previsíveis com que quase todos os vencedores gastam o seu meio minuto da praxe.
Este ano, perante a ausência de nomeação de Big Fish (escândalo!), que ganhe Lost in Translation, Mystic River (quem diria que Clint Eastwood, um conservador e em tempos considerado um perigoso republicano, viria a gerar tantos consensos, inclusive na esquerda mais espertalhaça) ou o Senhor dos Anéis, adaptação super competente de um dos grandes livros de sempre, quanto mais não seja por ter posto tanta gente a lê-lo.
Bichos
Se a Califórnia é um sitio habitado por gente estúpida, como aquela que é retratada no filme de Larry Clark, Ken Park? É.
E o aviso de que nenhum animal havia sido molestado durante as filmagens do filme, que aparece no fim do genérico? Estúpido, muito estúpido. Mas o Larry Clark até tinha feito um grande livro de fotografia chamado Tulsa.
Já viram o filme
?

2.28.2004

Maturity

Young I drank beer & vomited green bile
Older drank wine vomited blood red
Now I vomit air

Allen Ginsberg

2.25.2004

'Anjos sobre Berlim, o mundo desde o fim'
Faltaram os Bad Seeds ao concerto de Nick Cave no CCB. Já se sabia que eles não viriam, mas o que eu não sabia era a tanta falta que eles iriam fazer. E fizeram. Não que o concerto tenha sido mau, antes pelo contrário foi um grandessissímo concerto (desde já candidato n.º 1 a melhor do ano), mas o que sobrou em talento e proximidade, faltou em intensidade, força e, ora bem, emoção. Para mim (neste ponto tenho que discordar do Pedro), o concerto de há três ou quatro anos no Coliseu foi muito superior ao de ontem - direi mesmo que foi uma das mais inesquecíveis experiências musicais que já tive, a par das primeiras audições de Blonde on Blonde, Kind of Blue ou Hunky Dory - e se representou o fim de algo (e se calhar representou mesmo), foi o fim de algo que não queria ver acabado. Onde antes havia uma viagem ao centro da alma na qual necessariamente se tinha que perfurar o corpo, há agora melodias melancólicas e resignadas (des)adaptadas ao tom de “No more Shall we Part” (fabuloso disco!) sem que no entanto para este tenham sido compostas.
Ontem, sem prejuízo da excelência do que foi dado a ver e a ouvir, foi difícil, se não impossível, esquecer o som e a fúria dos Bad Seeds, ou de Nick Cave e os Bad Seeds, ao ouvir as novas versões de, por exemplo, Mercy Seat ou Do You Love Me; esquecer as interpretações de The Weeping Song, Red Right Hand, From Her to Eternity, e por aí fora, que imediatamente incendiaram um Coliseu repleto e encharcado; esquecer esse concerto onde ainda foi possível ver anjos sobre uma cave de Berlim e o mundo parecia estar perto do fim.

2.23.2004

De Milão para Lisboa
a setlist não deve andar muito longe desta:

01. Wonderful Life
02. Sad Waters
03. Hallelujah
04. The Singer
05. Henry Lee
06. Dolphins
07. Darker with the Day
08. West Country Girl
09. The Mercy Seat
10. God is in the House
11. Into My Arms
12. The Ship Song
13. Wild World
14. Love Letter
15. Rock of Gibraltar
16. Stagger Lee
17. Do you love me? - part II


No more shall we part
A vinte e quatro horas do concerto de Nick Cave, o estágio começa a entrar numa fase decisiva. Já se percorreu pela enésima vez a discografia completa, com paragens mais demoradas, porque mais intensas, na fase final.
Se Deus quiser (e Deus vai querer), amanhã por esta hora a sala vai estar cheia, o palco montado com um piano e os corações vão bater forte.
A vida não é só um dia, mas se fosse podia ser como o que se aproxima.

2.21.2004

O político como homem da bola ou o homem da bola como político

A partir de uma certa altura, Santana Lopes (SL), que até então era tratado como um fait-divers, começou a ser levado a sério por um número considerável de comentadores e jornalistas políticos. Estes, começaram a ver que o homem era capaz de “chegar lá” e, pese embora manterem-se intactas as razões que os levaram antes a tratá-lo com a merecida superficialidade, tiveram medo de ser ultrapassados pela realidade e vai daí, quando o mito se torna o facto publique-se o mito, como se receassem ser punidos pela opinião pública que dava mostras de gostar de SL, votando nele em sondagens e eleições.
Foi vê-los a contorcerem-se para apontar e realçar qualidades e virtudes de SL e a “avisarem”, em tom mais do que menos convicto, que ele estava cada vez mais a tornar-se num “caso sério” da política portuguesa.
Ao lerem e assistirem a estas opiniões proféticas nos media, muitos dos próprios companheiros de partido de SL, que até essa altura se haviam limitado a aplaudir os seus números de circo em congressos, acharam também por bem contribuir para credibilizar a personagem, não fosse o diabo tecê-las e ela viesse mesmo a ser importante. Quando falo dos companheiros de partido, não estou a falar da famosa trupe pequeno-burguesa-rural que dentro do partido sempre o seguiu. Estou a falar de pessoas que, mesmo tendo em conta a arte de SL para provocar mixed feelings, tinham e têm alguma obrigação de saber distinguir o que interessa do que é uma farsa.
E assim, de animador de congressos e convidado VIP para cruzeiros a Benidorm, SL passou a possível candidato a vencedor das eleições presidenciais.
Este trajecto de SL, deve-se quanto a mim a um fenómeno comparável ao que se passa em relação ao futebol, ou não fosse também SL um homem do futebol.
Perante um suposto apoio popular incondicional a SL (como há em relação aos clubes de futebol), os jornalistas começaram por publicitar a figura para venderem mais, e, passo seguinte, a tratá-la com alguma seriedade para tornarem o seu trabalho mais digno e justificável. Um pouco como se passa relativamente aos jogadores de futebol, que mesmo quando não jogam nada de nada, nunca são alvo de criticas severas dos inúmeros media desportivos – “está num dia menos feliz” (mas, ainda assim, feliz? pergunto eu), “uma exibição discreta”, “não está num dia de sorte”, é o máximo que a maioria dos jornalistas dizem, quando perante os nossos olhos a exibição do jogador em causa só pode ser qualificada como uma nulidade. Isto porque, se os inúmeros media desportivos tratassem o nosso futebol como de facto ele é – medíocre menos – estariam a pôr em risco e em causa a sua própria existência em tão elevado número e destaque. Para quê que é preciso tantos jornais, televisões e rádios a divulgar e tratar de uma matéria tão pouco interessante? perguntariam, mais cedo ou mais tarde, os consumidores.
Por outro lado, os políticos da mesma área de SL, ao verem o destaque que ele tem nos media, bem como o seu real e suposto apoio popular – destaque e apoio que também o futebol tem – têm uma de duas reacções: Uns, por deslumbramento saloio, juntam-se a ele julgando adivinhar estar no lado certo; outros, mesmo desprezando profundamente SL, acobardam-se e, à cautela, não lhe fazem frente, chegando até ao ponto de, muitos destes, por uma questão de estratégia, juntarem-se também a ele. Mais uma vez, o mesmo que se passa entre a generalidade dos políticos e o mundo do futebol: Uns tentam jogar nos dois campos, pois acham que isso lhes vai dar notoriedade, publicidade e, logo, votos; enquanto que outros, com medo das reacções dos adeptos em fúria, mesmo desprezando-o, não ousam meter-se com o mundo da bola.
A questão que se põe agora é esta: quando já não estamos mais a falar de futebol, de congressos partidários, da Figueira da Foz ou até de Lisboa, mas sim da presidência da república, será que o fenómeno vai ser reduzido à sua pouco significância?
Da parte dos media, não há que ter esperança. A regra é, e continuará a ser, vender, pelo que, por aí, tudo vai continuar na mesma.
Já da parte dos políticos da mesma área de SL, daqueles que pensam e têm ainda algum gosto pelo país, eu espero que qualquer coisa seja feita. Espero que se deixem de mariquices e, de uma vez por todas, ponham fim a esta anedota em que cada vez mais vivemos.

Na hora de retribuir os cumprimentos, lembro-me de outro (grande) filme de Tim Burton - Big Fish - e de palavras que a ele tão bem assentam:

"Io mi sono inventato quasi tutto: un'infanzia, una personalità,
nostalgie, sogni, ricordi: per il piacere di poterli raccontare"

Federico Fellini

2.20.2004



Estando embora longe do mar
quem se não eu imaginava, num certo dia de sorte, ser por esta nave resgatado e dentro do seu porão, com eles seguir viagem
É bom que este excelente artigo seja lido. Sobretudo por meninos (e meninas) de uma certa e nova direita para quem viajar é um cruzeiro ao Bugio, La Feria "não é assim tão mau" e "até tem público", César das Neves quando fala é para ser ouvido, e subir na vida foi realizar o sonho de comprar muitas camisas com um boneco a jogar pólo para ir, dia sim, dia não, jantar ao XL, com elas vestidas e abertas até um pouco acima do umbigo.

2.18.2004

Ainda contra o aborto
Por entre o terrorismo argumentativo de Ana Gomes (que perante um médico que tentava explicar a forma como legitimamente procurava demover as suas pacientes de fazerem um aborto, mostrando-lhes as imagens de uma ecografia feita às poucas semanas de gravidez, disparou: “oh pá! e então uma fotografia de uma criança atingida por uma bomba no Iraque?”), a falta de preparação gritante da deputada Ilda Figueiredo para debater seja o que for (é curioso como ao fim de tantos anos em Bruxelas e depois de tanto apontar para os exemplos de outros países da Europa, a Dra. Ilda não tenha ainda aprendido a ter maneiras, a não ser tão ordinária e mal criada e a deixar os outros falarem) e a tentativa de um grupo de pessoas dizer qualquer coisa perante sistematicas interrupções, lá se passou mais um debate sobre o aborto.
Um a um os argumentos das defensoras do sim.
1- Diferença entre vida humana e pessoa humana. A pessoa humana merece uma tutela absoluta e como tal o seu direito à vida sobrepõe-se a todos os outros. Até aqui estamos todos de acordo. Já a vida humana, conceito mais lato que abrange a vida intra-uterina, não merece, nesse estado e pelo menos até às 12 semanas, a mesma protecção. Porquê? Porque há outros direitos de pessoas humanas que se lhe sobrepõem. A saber: a liberdade e dignidade das mulheres. Não estamos, pois, a falar da opção entre a vida de um ser vivo humano (o feto ou embrião) e de uma pessoa humana (a mulher), uma vez que numa gravidez onde haja risco de vida para a mãe o aborto é legalmente permitido. Estamos a falar na opção entre o direito à vida de um ser humano, ainda que em fase pré pessoa (e aqui estou a conceder apenas para efeito argumentativos, porque para mim não há diferença significativa), e outros direitos que, embora existindo e sendo de humanos já pessoas, são objectiva e hierarquicamente (tendo em conta a nossa hierarquia civilizacional) inferiores ao direito à vida. Nós todos, pessoas humanas, temos direito à nossa integridade física e ao nosso bom nome, entre outros, mas, que eu saiba, em circunstância alguma o nosso ordenamento jurídico permite que matemos alguém para evitar que aqueles direitos sejam violados. É uma questão de proporção.
2- Ninguém defende o aborto. É mentira. Quem defende a liberdade de uma mulher fazer um aborto e defende que essa liberdade é ilimitável, pelo menos até uma determinada fase da gravidez, está a defender o aborto. Está a defender o aborto das mulheres que tendo uma gravidez indesejada, independentemente dos motivos que a tornam indesejada (e, no limite, apenas porque não querem ter um filho), querem abortar. O que ninguém defende é que as mulheres que não querem ter filhos engravidem e se vejam confrontadas com a hipótese de abortar. Mas, se isso acontecer - e não há nada, nem lei, nem politica, nem meio, que possam prevenir a 100% que isso aconteça - as águas dividem-se entre aqueles que consideram que ela, mulher, pessoa humana, deve ter o direito de escolher ter ou não ter o filho, defendendo, consequentemente e neste contexto de gravidez indesejada, o aborto, e os que consideram que ela não tem esse direito, excepto (e digo excepto porque vou falar em excepções) nos casos em que o motivo que leva a mulher a não querer ter o filho é de tal maneira essencial que passa a ser atendível, como seja o não querer correr o sério risco de vida para ter um filho (vida de um ser humano vs. vida de uma pessoa humana). Sejamos claros, há quem defenda o aborto (quando uma mulher quer) e há quem não o defenda.
3- São concepções e/ou preconceitos religiosos e políticos que movem os defensores do não. Não é verdade, pelo menos no que respeita aos defensores do não que conheço. O que leva a defender o não é acima de tudo uma noção de responsabilidade humana, essencial ao próprio conceito de humanidade. A vida humana é inviolável, a vida humana começa com a concepção (é um facto cientifico), então, a menos que estejamos perante direitos de igual ou superior (haverá?) importância, a vida humana, a partir do momento em que existe, é inviolável, e nós, que proclamamos esse direito à vida e o consideramos inviolável somos responsáveis por preservá-lo. É, pois, uma concepção científica, jurídica e acima de tudo civilizacional (e logo Política, com P grande), que só fica bem às religiões e políticas (agora com p pequeno) que as seguem.
4- É inadmissível que as mulheres sejam postas na cadeia. É verdade, em muitos casos é verdade. Para esses existem já instrumentos legais que salvaguardam as mulheres. A falta de culpa, o estado de necessidade desculpante, a inexistência de dolo. Mas atenção, nem sempre tal sucede. Só os ingénuos acham que não há abortos feitos de forma leviana, perfeitamente consciente, voluntária e reiterada, para além, mais grave que tudo, daqueles que, em qualquer contexto, usurariamente se aproveitam das mulheres que querem abortar para ganharem dinheiro. E, se é inadmissível que as mulheres sejam condenadas a prisão por fazerem um aborto até às 12 semanas, será já admissível que sejam presas se o aborto for feito às 12 semanas e 1 dia? Como condenar (judicialmente) uma mulher que, coagida pelo marido ou família e com medo físico destes, faça um aborto às 13 semanas, e não uma outra que sem qualquer coacção ou pressão, com as tais “condições objectivas” para ter um filho e em perfeita consciência, faça um aborto às 5 semanas? Quem defende o sim, por uma questão de coerência, não deveria estabelecer o limite das 12 semanas - não tem qualquer justificação cientifica e apenas serve como táctica politica para amenizar as consciências e permitir uma maior aceitação social das suas propostas.
5- A lei actual é hipócrita e não evita os abortos. É hipócrita porque condena sem condenar. Não é verdade, a lei é aplicada, tanto quando condena, como quando não condena. Qualquer julgamento de um alegado crime pode terminar com a absolvição - e nisto não há qualquer hipocrisia mas tão só justiça -, e mesmo que todas as pessoas julgadas por um determinado crime, sejam absolvidas, continua a haver justiça. Num estado de direito, há justiça quando um tribunal absolve ou condena, quando anula ou confirma uma sentença, quando se provam ou não se provam, os factos ou a culpa de quem os pratica, há justiça porque é nos tribunais que se faz justiça. A lei não evita os abortos, como não evita os homicídios, a fuga aos impostos, a pedofilia ou o roubo. A lei não evita mas procura evitar, e é para isso que ela existe, pois se só pudesse existir quando fosse integralmente cumprida nunca existiria e, como tal, nunca seria lei.
6- Quem nasce deve nascer com dignidade. Este tipo de argumento, que pressupõe sempre por parte de quem o invoca que a dignidade está ligada ao conforto físico e material, é, quanto a mim, o mais perigoso de todos. Se considerar-se que apenas se deve tutelar a vida ou expectativa de vida daqueles que podem e vão nascer saudáveis, prósperos, com quarto, cama, tecto, mesada, limpos, bonitos, fortes, novos, a rir, com perspectivas de carreira, com perspectivas de ter o que comer, daqueles que não vão dar trabalho, ou mais trabalho, ou muito mais trabalho, daqueles que não vão pesar no orçamento, na lista do supermercado, que não correm riscos de ir parar à casa pia ou a uma qualquer sarjeta, ou ser vendidos, ou ser mortos à pancada, que não vão sofrer, ter dor, ou medo, daqueles que obrigatoriamente vão ter que ser felizes, então está bem - defenda-se a liberdade de quem os carrega na barriga definir quem vai ser feliz e a liberdade de, prevendo a sua infelicidade, abortar. Se não, se se considerar que a dignidade é algo que se tem pelo simples facto de existir, esse argumento já não vale.

2.17.2004



quando se está sempre à espera, não custa esperar mais uns dias
um, dois, três, uma semana, para o concerto do ano, ou de uma vida

2.15.2004

Homens de gabardine

Quem gosta de cinema e viu algum dos seus filmes não mais esqueceu. De repente, os policiais negros dos anos 40 eram passados em França, o preto e branco substituído por uma cor austera e glacé, e Humphrey Bogart e Robert Mitchum davam lugar a Alain Delon e Jean Paul Belmondo.
Jean Pierre Melville foi um mestre do estilo e do pormenor, tendo criado um género único - o polar - que veio a influenciar muita da boa gente que se lhe seguiu, da nouvelle vague a Tarantino, com filmes como Le Samouraï (1967), Le Cercle rouge (1970) ou Un Flic (1971).
Agora que a Criterion (não me canso de dizer, a melhor editora do mundo) os começou a editar em DVD, deixemo-nos também nós influenciar.




2.14.2004

"There's too much caffeine
In your bloodstream
And a lack of real spice
In your life"


Nasceram há mais de vinte anos, viveram três. Fizeram poucos e grandes discos que conseguem a proeza de ser, simultaneamente, datados e intemporais. Nunca morreram.
Na senda de outros Blogs, aqui fica uma lista das preferidas:



Panic

A rush and push and the land is ours

Bigmouth strikes again



Rusholme ruffians

How soon is it now



I know its over

Death at one’s elbow



The boy with the trorn in his side

There is a light that never goes out

Vicar in a tutu



Girlfriend in a coma


p.s. quem não tiver estes discos, todos, alguns ou nenhum, pode dirigir-se à fnac onde se encontram à venda pela simbólica quantia de €7 cada
Peeping Tom

A primeira vez que o vi, ainda em plena infância, foi numa sala de música (um luxo!) de uns primos mais velhos. Na capa, em cartão mate, via-se um homem de cabelo amarelo e roupa de circo que parecia ter caído do espaço, e num canto inferior da contracapa podia ler-se "to be played at the maximum volume".
Desde esse preciso momento fiquei fascinado por aquele objecto. Quantos segredos poderia guardar?


2.11.2004



Evelyn Waugh é um homem

Ainda o Lost in Translation. Ao ler mais um magnífico poste do FMS (o Francisco é das pessoas que melhor escreve nos blogues e não há mais discussão. E, se querem saber, isto não é graxa porque, por ora, a haver alguém que teria que a dar, seria ele a mim e não o inverso) - A GERAÇÃO BOGUS - lembrei-me de novo do Filme de Sofia Coppola, mais precisamente de uma cena que agora não me sai da cabeça: Scarlett e o marido encontram no lobby do hotel uma amiga de Hollywood. No meio da conversa, já não sei a propósito de quê, a amiga refere-se a Evelyn Waugh como sendo uma mulher, o que leva Scarlett a dizer, com um misto de desprezo e desinteresse, qualquer coisa como: “but, Evelyn Waugh was a man”.
Este pequeno comentário dá a Charlotte uma nova dimensão. Já não bastava ser linda de morrer, apresentar os dotes já confirmados na festa dos globos de ouro, estar a passar uma crise existencial, estar sozinha no outro lado do mundo, como ainda por cima é culta. Não é que o comentário em si mesmo seja revelador de uma grande cultura - uma pessoa culta não se define propriamente por saber que Evelyn Waugh é um homem, já o contrário, uma pessoa que julgue que é uma mulher, indicia uma considerável falta de cultura – mas no contexto em que foi feito, não haja dúvidas que Sofia Coppola quis revelar-nos (mais) essa qualidade da personagem.
De um momento para o outro, ficamos a saber que Charlotte é uma mulher perfeita, e eu, de dia para dia, quando penso em Lost in Translation, fico mais certo que não foi pelo filme, mas por ela, que nos apaixonámos.


2.10.2004



De que falamos quando falamos de John Ford

Num artigo (Emotion pictures – slowly rockin’ on) datado do ano de 1970, um então estudante em Munique, chamado Wim Wenders, lamentava o estado das coisas no cinema que lhe era dado a ver.
“Seeing becomes an act of missing” escreveu ele, para logo proclamar a falta que sentia dos filmes de John Ford. Da amizade, do carinho, da seriedade, da paz, da humanidade, que existiam nos filmes de John Ford. A falta que sentia dos rostos e das suas expressões nunca forçadas; das paisagens que não se limitam a fazer de cenário; das histórias que, mesmo quando engraçadas, nunca são idiotas; dos actores que em qualquer papel representam diferentes versões da sua personalidade.
Wim Wenders, com tristeza, constatava que já não haveriam mais filmes de John Ford.
Passados trinta e tal anos, é a minha vez de constatar que a falta que Wenders sentiu e sobre a qual apaixonadamente escreveu confirmou-se definitiva.
Fizeram-se grandes filmes, houve (e apesar de tudo ainda há) muito e bom cinema americano. Obras-primas várias. Dos épicos bíblicos (sim, confesso que sou fã do Ben Hur e afins), aos movie brats; de John Cassavettes aos filmes catástrofe dos anos 70 (sim, também me penitencio por gostar); dos mergulhos oniricos na alma de David Lynch à nostalgia revisitada de Woody Allen ou, mais recentemente Wes Anderson; da produção quase artesanal, elementar e sempre certeira de Carpenter, à megalomania bigger than cinema de Stanley Kubrick, passando por essa obra de síntese de todo o grande cinema que é Dead Ringers de David Cronenberg.
Houve tudo isso e mais. Mas não, nunca nada parecido com o cinema de John Ford voltou a haver.
Quando falamos de John Ford falamos do que há de mais humano nos humanos. Nos grandes sentimentos que se desenvolvem nos grandes espaços; nas grandes ambições que nunca põe em causa os mais discretos e íntimos pudores; em homens e mulheres dos quais nos orgulhamos de poder ver, ainda que atrás de um vidro, ainda que seguindo um guião, ainda que já não existam, nem tenham, quiçá, na realidade, existido.
John Ford, o seu cinema, é de tal forma poderoso que une os homens que com ele cresceram e vão crescendo. Quando falamos de John Ford, falamos de um denominador comum que impede todos e quaisquer uns que o compartilham de se zangarem uns com os outros. Como é possível querermos mal a alguém que apenas quer ver um filme de John Ford? Como é possível irritarmo-nos com quem quer que seja que já viu e quer rever o The Searchers, o Young Mr Licoln, o Stagecoach, o Quite Man, etc. etc. etc?
Não é. Não é, porque quando falamos de John Ford falamos de coisas verdadeiramente importantes, e quando estamos de acordo no que é verdadeiramente importante, estamos em paz.

2.09.2004



Smooth Operators

Depois de, regressados da lua, conquistarem a terra, e do fabuloso, subestimado e, a espaços, pink floydiano 10,000 Hz. Legend, os Air oferecem música nova para combater o stress. Para ouvir em casas mobiladas com design nordico, ou em quaisquer outras onde haja bom gosto, antes, durante ou após o jantar.
Tropicalismo

"Na verdade, a gente nunca teve a convicção de nada. Nós não carregávamos o mundo nas costas. Pode ser simplesmente que a gente naquela época estivesse na vanguarda das mudanças de comportamento que se delineavam no mundo. Mas o que nós fizemos não foi tão ativo do ponto de vista da transformação das bases da sociedade. A prova é que nada mudou."

Caetano Veloso, 1974

2.06.2004



Para ir ouvindo, vendo e sentindo

2.04.2004

A angústia do adepto no momento de ver o telejornal
O mundo do futebol português está, cada vez mais, a tornar-se num mundo de selvagens à solta. Os media (com raras excepções), sabendo do gosto das massas por espectáculos grotescos, aproveitam para vender, esmiuçando as suas misérias até ao tutano. O Estado (nas pessoas, cada vez menos, que não tem 'ligações' ao futebol) tem medo de, sequer, olhar para a barbaridade, quanto mais de a pôr na ordem. Os políticos acham que ao "meterem-se" com o mundo da bola perdem votos, isto porque, se o mundo da bola não fosse tão importante para o povo que vota, os media não davam tantas páginas e horas de transmissão ao mundo da bola.
Andamos nisto há anos, com a tendência clara para piorar.
Todas as pessoas que conheço estão de acordo que é preciso fazer qualquer coisa. Eu gosto de futebol. Quase todas as pessoas que conheço gostam de futebol e têm o seu clube. Nenhuma pessoa que conheço condicionou, condiciona ou condicionará a o seu voto por causa de ou do futebol.
Porque razão é que tudo vai continuar igual?
Bloco de ilusões
Saíram por aí umas sondagens que dão a esquerda - toda somada - uns pontos à frente da direita, e logo os rapazes do Bloco se apressaram a congeminar teorias sobre a necessidade de unir aquela para acabar com o pior governo de sempre.
Unir toda esquerda?
Há que não ter ilusões.
Em primeiro lugar, é sabido que estas sondagens, generosas para a esquerda, raramente se confirmam nas noites das eleições.
Em segundo lugar, no PS – a única via para a esquerda governar – as pessoas responsáveis, com um mínimo de ambição e sentido de estratégia, sabem perfeitamente que muito dificilmente (ou nunca) chegarão ao poder (i) com um puro programa de esquerda, e (ii), muito menos, aliados (sob que forma for) com os outros partidos de esquerda.
Não chegam lá com um puro programa de esquerda porque sabem que com um tal programa o país é ingovernável. O núcleo fundamental das políticas de um governo está, desde há uns anos, estabilizado e, seja o PS ou o PSD (com ou sem o PP), manter-se-á inalterado. Esse núcleo fundamental é algo que por natureza não é aceitável pelo Bloco nem pelo PCP. É algo de civilizacional. Tem sobretudo que ver com conceitos de liberdade e de responsabilidade, que, quanto a mim, são pacíficos dentro daqueles (mas não destes) partidos.
Também não chegam lá com os outros partidos, porque, com eles ao lado, descredibilizam-se, afugentando milhares e milhares de votos, precisamente porque esses outros partidos não têm a mesma concepção de liberdade e resposabilidade que a esmagadora maioria das pessoas tem, maioria que nunca iria compreender ou aceitar coligações ou acordos contranatura. É óbvio que há grandes diferenças entre o PS, o PSD e o PP, não só a nível de estilo mas também de conteúdo. É óbvio que não é a exactamente a mesma coisa ser governado por uns ou por outros. Mas não são as mesmas diferenças que existem entre estes três partidos e o Bloco e PCP.
Noventa por cento daquilo que o Bloco profere apenas pode existir a um nível mediático. Serve para aparecer nas televisões, para lançar polémica, para encher de parangonas os jornais, para fóruns TSF, para “fracturar” nas ondas hertzianas, mas não serve para mais nada. Não tem aplicação ou concretização em nenhum país que pretenda ser frequentável.
Assim, das duas uma, ou o PCP e o Bloco mudam radicalmente e deixam de ser o PCP e o Bloco, ou a única forma da esquerda governar continua a ser o PS. Sozinho. Ao centro.

2.02.2004



'e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?'

2.01.2004

Soares é fixe
Soares alerta com um ar grave e balofo que a democracia está em perigo por o PP estar no governo.
É triste que este homem, que chegou a ser uma figura de referência para uma larguíssima maioria de portugueses, que quase gerou o famoso “consenso”, agora (felizmente) já não tão querido, que, contra todas as provas dadas, foi considerado um homem muito culto, um homem de quem quase todos gostavam e poucos menos admiravam, tenha escolhido esta sua faceta mais ridícula para terminar a já estafada carreira politica.
Mário Soares é fixe. É um peixe “bonacheirão”, não de águas profundas, mas muito superficiais, que na sempre adiada mas finalmente chegada andropausa política, se vai entretendo a proferir chorrilhos de disparates sobre tudo aquilo que pessoalmente não gosta.
Agora sim, Soares é fixe. É fixe, mas, tristemente, arrisca-se a não ser mais nada.
Site Meter