2.10.2004



De que falamos quando falamos de John Ford

Num artigo (Emotion pictures – slowly rockin’ on) datado do ano de 1970, um então estudante em Munique, chamado Wim Wenders, lamentava o estado das coisas no cinema que lhe era dado a ver.
“Seeing becomes an act of missing” escreveu ele, para logo proclamar a falta que sentia dos filmes de John Ford. Da amizade, do carinho, da seriedade, da paz, da humanidade, que existiam nos filmes de John Ford. A falta que sentia dos rostos e das suas expressões nunca forçadas; das paisagens que não se limitam a fazer de cenário; das histórias que, mesmo quando engraçadas, nunca são idiotas; dos actores que em qualquer papel representam diferentes versões da sua personalidade.
Wim Wenders, com tristeza, constatava que já não haveriam mais filmes de John Ford.
Passados trinta e tal anos, é a minha vez de constatar que a falta que Wenders sentiu e sobre a qual apaixonadamente escreveu confirmou-se definitiva.
Fizeram-se grandes filmes, houve (e apesar de tudo ainda há) muito e bom cinema americano. Obras-primas várias. Dos épicos bíblicos (sim, confesso que sou fã do Ben Hur e afins), aos movie brats; de John Cassavettes aos filmes catástrofe dos anos 70 (sim, também me penitencio por gostar); dos mergulhos oniricos na alma de David Lynch à nostalgia revisitada de Woody Allen ou, mais recentemente Wes Anderson; da produção quase artesanal, elementar e sempre certeira de Carpenter, à megalomania bigger than cinema de Stanley Kubrick, passando por essa obra de síntese de todo o grande cinema que é Dead Ringers de David Cronenberg.
Houve tudo isso e mais. Mas não, nunca nada parecido com o cinema de John Ford voltou a haver.
Quando falamos de John Ford falamos do que há de mais humano nos humanos. Nos grandes sentimentos que se desenvolvem nos grandes espaços; nas grandes ambições que nunca põe em causa os mais discretos e íntimos pudores; em homens e mulheres dos quais nos orgulhamos de poder ver, ainda que atrás de um vidro, ainda que seguindo um guião, ainda que já não existam, nem tenham, quiçá, na realidade, existido.
John Ford, o seu cinema, é de tal forma poderoso que une os homens que com ele cresceram e vão crescendo. Quando falamos de John Ford, falamos de um denominador comum que impede todos e quaisquer uns que o compartilham de se zangarem uns com os outros. Como é possível querermos mal a alguém que apenas quer ver um filme de John Ford? Como é possível irritarmo-nos com quem quer que seja que já viu e quer rever o The Searchers, o Young Mr Licoln, o Stagecoach, o Quite Man, etc. etc. etc?
Não é. Não é, porque quando falamos de John Ford falamos de coisas verdadeiramente importantes, e quando estamos de acordo no que é verdadeiramente importante, estamos em paz.
Site Meter