Esta, não sendo nova, é a primeira das onze lições que Robert McNamara debita no excelente filme de Errol Morris
The Fog of War (a ver, ou a rever, hoje no
Indie Lisboa).
Quem está à frente de uma guerra, ou quem tem que gerir situações que nela podem desembocar, deve tentar colocar-se na pele do seu inimigo para, através dos olhos deste, olhar para si próprio e, assim, adivinhar o que lhe vai na alma (se for caso de a ter), perceber quais são os pensamentos que estão por detrás das suas decisões, acção ou omissões. Para descobrir quais são as suas expectativas e as suas ambições. De onde vai partir, até onde pretende ir, o que está disposto a arriscar e do que jamais quererá abdicar.
Ao aplicar esta lição ao Iraque, veremos como nem Bush nem Sadam conseguiram sintonizar-se um com o outro. O Iraque, parece-me bem, é um exemplo de como esta lição, melhor ou pior estudada, pode ser decisiva para o desfecho de uma crise política.
Bush, a acreditar naquilo que quis transmitir, viu Sadam como um perigo (directo – ADM – e indirecto – terrorismo) para a América e para o Ocidente, fazendo desta sua visão justificação principal para a invasão, com as consequências que ainda estão por apurar. Bush, ao ver (ou ao fingir que viu) Sadam como uma ameaça para o Ocidente, mostrou não ser capaz de meter-se na pele dele. Longe de mim querer branquear Sadam. Mas, de um assassino do seu próprio povo e vilão dentro do seu próprio país, para “um perigo para o Ocidente”, no sentido que Bush quis dar à expressão, vai alguma distância (veja-se, com as devidas adaptações, o caso de Castro).
No momento em que a guerra começou, Sadam tinha a ambição que sempre teve: ser rei e senhor do Iraque. Um ditador local que, no seu (grande) quintal, faz o que lhe dá na gana. Para além disso, Sadam quis que ficasse bem claro para os outros – e aqui os “outros” são os seus e os outros propriamente ditos – que no exercício do seu poder não se deixava condicionar por quem quer ou o que quer que fosse. Estou convencido que Sadam não tinha a ambição de atacar nem a América, muito menos o mundo, e di-lo-ia mesmo que tivessem sido descobertas as famigeradas armas de destruição massiva (que ainda podem aparecer, já sei, já sei). Desta vez, qualquer ataque de Sadam, mesmo que restringindo-se à zona do Médio Oriente, findaria com a sua própria aniquilação. E Sadam, mais do que ambicioso, prezava o seu bem-estar pessoal.
Estou igualmente convencido que o Iraque, enquanto Sadam chefiou, esteve longe de ser um campo de treino de terroristas. Antes pelo contrário: a forma absoluta de poder de Sadam era incompatível com a existência de quaisquer outros poderes, ainda que a ele subordinados, muito menos marginais. Sadam, até pela forma “laica” como exercia o império, era avesso à presença nos seus territórios do tipo de fundamentalismos que alimentam o grande terrorismo internacional. Sadam, como de modo primário alguns disseram, queria putas e vinho verde (ou rosé) e para isso estava disposto a sacrificar o seu povo, mas nunca o seu domínio.
Por seu lado, da mesma forma que Bush foi incapaz de vestir a pele de Sadam, também este foi incapaz de enfiar-se na pele do seu inimigo. Sadam acreditou sempre que Bush nunca atacaria o Iraque. Sadam confiou que perante a conjuntura internacional, maioritariamente hostil a uma ofensiva,
no fim do dia, Bush acabaria por hesitar e, hesitando, acabaria por condescender. De outra forma, caso tivesse previsto a invasão, Sadam teria encontrado uma forma de ceder sem 'ceder'. Sadam sabia melhor do que ninguém que o seu exército seria incapaz de resistir por muito tempo a uma ofensiva americana e, assim, o brutal mas não totalmente estúpido Sadam, tinha consciência de que um ataque, independentemente de tudo o resto, acarretaria fatalmente o fim os seus dias de prepotência. Sabendo disso, e por mais que quisesse mostrar-se inflexível, Sadam não iria esticar a corda se tivesse enxergado que Bush estava disposto a ir até ao fim.
A acreditar na tese de que as hipotéticas ADM e o eventual covil de terroristas foram as principais razões para a invasão (coisa em que eu - por ainda ter em alguma consideração intelectual, se não o presidente, pelo menos a administração americana - não acreditei), a guerra do Iraque nasceu de um erro de avaliação mútua. Bush julgou que Sadam queria mais, quando na realidade apenas queria o que já tinha, e Sadam julgou que Bush, consciente do que ele - Sadam - queria, não iria penhorar-se perante o mundo.