9.01.2004

Being John Malkovich

Tom Ripley é um dos meus heróis; ou melhor, é um dos meus heróis-anti-heróis. A sua excentricidade, os contrastes comportamentais onde a barbárie segue sempre lado a lado com a sofisticação, a inteligência perversa, a arrogância e o desprezo pelo próximo que não exclui a possibilidade de com ele, por vezes, se importar, a imprevisibilidade das atitudes, a ambiguidade sexual, toda uma mistura inesperada de características que leva a que os defeitos sejam qualidades e estas se mantenham como tal.
Tom Ripley é uma personagem complicada de encaixar no mundo politicamente correcto e agreste em que às vezes parece vivermos. Cá, não há lá lugar para a sua brutalidade nem para o seu bom gosto; mas lá, nas páginas dos livros de Patricia Highsmith, onde Ripley se move imune a qualquer julgamento moral e onde “ter” e “poder” são verbos de fácil conjugação, o criminoso brilha em todo o seu esplendor.
Por ser uma personagem tão rica e complexa, a missão de transpô-la para o cinema mantendo um mínimo de dignidade é coisa difícil de alcançar. O risco de defraudar as legitimas expectativas daqueles que o conhecem do papel é elevadíssimo – para estes, mesmo que o filme seja bom, se a personagem não convencer, tudo acabará por ir água abaixo. Foi assim com The Talented Mr. Ripley de Anthony Minguella - um filme competente no qual Matt Damon, embora esforçado, deixa imenso a desejar - e foi assim com The American Friend, de Wim Wenders, onde Denis Hopper, sem deixar de ser brilhante, não pegou com o pré-conceito que tinha, e tenho, de Tom Ripley. Bons filmes (muito melhor o de Wenders) para quem os vê ignorando os romances de Patricia Highsmith, porém, para obstinados da série em livro – como eu – não passam de filmes falhados.
Há uns dias – por uma imperdoável falha, apenas há alguns dias –, vi a adaptação de Ripley´s Game, levada à tela por Liliana Cavani, onde finalmente pude vislumbrar uma aproximação em carne e osso àquilo que na minha cabeça é Tom Ripley. O autor da proeza é John Malkovich, que sendo John Malkovich consegue, também, ser Tom Ripley. Ripley’s Game é dos Ripley mais violentos e Malkovich, com o seu ar impune, superior e distante, empresta pela primeira vez (é verdade que não foram assim muitas) credibilidade literária à personagem cinematográfica. O filme já seria, em qualquer caso, um óptimo filme: argumento (obviamente) de primeira, uma fotografia excelente (glacé, como nos polards de Jean Pierre Melville), realização segura e actores secundários que não comprometem (se exceptuarmos Chiara Casseli). Só que, ao conseguir recriar de forma plausível a inverosímil criatura que Ripley é, o filme torna-se, mais do que um óptimo, num grande filme.
E assim, de um momento para o outro, Tom Ripley passou a ser John Malkovich. Para o bem e para o mal, daqui em diante, não mais será possível ler os livros de um sem que sobre eles paire a sombra do outro.
Terá sido a morte da personagem? Ou o seu renascimento livre das garras da imaginação...
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