11.01.2004

o país profundo (ii)


O genérico inicial dá o tom para aquilo que se segue: uma mulher (Carla) de joelhos esfrega o chão da pista de dança de um bordel, acompanhada pelo irritante som do chiar das luvas de borracha a roçar no soalho e do farfalhar do Kispo ordinário (redundância) que traz vestido.
A história é simples - um bar de alterne, negócio familiar instalado algures na província; um “empresário” (Nélson) que gere o negócio; um negócio mal acabado com aqueles para quem não tem pedalada (máfia russa); uma filha (Sónia) que vê o destino traçado por esse facto – e é previsível - porque Sónia está destinada a servir de moeda de troca, prometida que foi como puta a um mafioso de leste para safar uma qualquer dívida por pagar, e nós cedo sentimos que não existe outra saída. Mas nada disso diminui a força do filme. Antes pelo contrário: a caminhada inexorável das personagens para a desgraça final – da qual nós – espectadores - logo nos apercebemos, e elas – personagens –, a pouco e pouco, impotentes, lá vão também enxergando - torna aquilo que poderia ser cómico – um povo reles, retratado no seu habitat imundo, com as suas maneiras obscenas e o seu linguajar rasca – num fado resignado que muito nos diz.
Os actores vão quase todos muito bem. Leonor Batarda (Carla), Rita Blanco (Celeste), José Raposo (uma personagem cujo nome me esqueci mas que merecia mais tempo). Fernando Luís (Nélson), no papel de um chulo manhoso, sobressai. As suas tiradas pimbo-lapidares são um must - do melhor que há nos diálogos fragmentados, sobrepostos e por vezes imperceptíveis (propositadamente, calculo). Há uma cena (que, aliás, faz parte da trailler) onde Fernando Luís, com a cara pintada de palhaço, reage ao comentário de alguém que diz “a gaja é boa”, com a frase “a gaja, não - A gaja é minha filha” – dita com uma expressão meio gingona, meio conformada, que define num instante a sua personagem: tristíssima - como só os palhaços conseguem ser.
Estilística e plasticamente também gostei muito do filme: cores carregadas; ambiente sórdido e claustrofóbico; insistência nos grandes planos (é um filme feito de grandes planos) - de caras, cabelos, coxas e cus - que vão aumentando à medida que o filme avança, acabando por quase engolir os actores. E pouca luz, porque a noite é mesmo escura. Depois, uma banda-sonora de fundo com aquilo que de mais institucional há nos nossos bas-fonds: Ágata, Romana, Tony Carreira e quejandos. Ingredientes bem cozinhados numa trama dramática com bom ritmo.
É um excelente filme. Apesar de não ser um assíduo espectador de fitas portuguesas e não ter, por isso, grandes termos de comparação, arrisco-me a considerá-lo um dos melhores filmes portugueses. E mais, um caminho para o cinema luso. No momento em que a grande maioria das nossas cabeças pensantes considera que o país se afunda inevitável e tristemente, e em que outros acham que, apesar de tudo, a coisa ainda se vai aguentando enquanto não chega o grande afundanço que vai seguir-se, putedo, incesto, adultério e sacanice no Portugal profundo são uma boa alternativa de script a tudo aquilo que, entretanto, se vai passando no outro país profundo.

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