10.01.2004

Kerry vs Bush

Não faço ideia de quem ganhou o debate, até porque os critérios comummente usados para aferir o resultado destes confrontos são cada vez menos substanciais: a postura dos candidatos, a forma como são ditas as coisas, o maior ou menor à vontade, o olhar, a cor da gravata e outros aspectos marginais, mas que mediaticamente podem assumir enorme importância. No entanto, atendendo às coisas que foram ditas e não já à forma como foram ditas, não tenho dúvidas que, dentro da pobreza a que se assistiu (que não é de agora - reveja-se, por exemplo, o famoso debate Nixon vs. Kennedy e a prestação deste último), Kerry, apesar de tudo, disse as mais acertadas.
O problema de Kerry está na falta de consistência. Na ânsia de não chocar ninguém, Kerry não consegue ser suficientemente incisivo nas suas criticas nem retirar delas todas as consequências. Sobre o Iraque, Kerry disse - e eu estou totalmente de acordo - que Sadam não era uma prioridade, e que canalizar os esforços que a América canalizou para derrubá-lo, no meio de uma guerra total ao terrorismo, tinha sido um erro. Com isto, Kerry deu a entender que subjacente ao seu juízo estava a convicção de que Sadam não era uma ameaça, pelo menos ao ponto de justificar uma guerra. Ora, Kerry, ao longo do debate, acabou por reconhecer mais do que uma vez que, também ele, havia visto Sadam como uma ameaça, concedendo assim a Bush a possibilidade de, na réplica, o arrumar, dizendo, com um estilo algo primário, que se Sadam era uma ameaça ele, ao acabar com ela, havia feito o que lhe competia. Depois, para justificar-se do facto de ter considerado Sadam como uma ameaça e, apesar disso, criticar a invasão, Kerry centrou os seus ataques na forma como Bush conduziu a guerra - sem uma coligação alargada, sem a anuência da ONU, todos, a meu ver, argumentos menores -, ao invés de criticar de modo mais contundente a própria guerra e as consequências que, para já, estão à vista.
Kerry deveria ter dito abertamente que a invasão do Iraque foi um tiro ao lado; que Sadam nunca foi uma ameaça real; que não havia terrorismo fomentado no Iraque que justificasse tamanho esforço; que, bem pelo contrário, agora que não há Sadam nem qualquer outro poder sólido, o Iraque está a tornar-se num território fértil para novos terroristas. Mas não disse. Ou não o disse com a força que as circunstâncias exigiam. Kerry abordou estas ideias, mas fê-lo de forma tão tímida que não chegou para criar qualquer contraste significativo com Bush.
É claro que é difícil (para mim também, quanto mais para ele) reconhecer que, muito provavelmente, a guerra do Iraque foi um logro. Até porque isso significa aceitar que, ponderados os pós e os contras, teria sido melhor (excepto para os iraquianos) o Iraque ter ficado como estava, ou seja, com Sadam. A este respeito não há terceiras posições: ou a guerra era necessária e foi bem feita, ou não era e não foi.
Hoje, ao contrário de ontem, acho que não foi necessária e, pior, pode até ter sido contraproducente na, muito mais importante, guerra contra o terrorismo. Kerry, embora aparente achar o mesmo, por razões de comprometimento “patriótico” (que eu, como é óbvio, não tenho) não conseguiu dizê-lo convincentemente. Não sei se ganharia, ou não, caso conseguisse. Mas, pelo menos, mostrava ser uma alternativa.
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