5.24.2004

Deliverance

Tróia é um filme para miúdas suburbanas que dão risinhos marotos à vista do caparro armado e hormonalmente induzido de Brad Pitt. Brad Pitt não é o pior actor do mundo, mas é muito parecido com ele, tal como muito parecido é com aquele que faz de seu primo em Tróia, que, por sinal, é o pior actor do mundo. Aliás, essa parecença acabou por induzir em erro Heitor, um guerreiro com quem simpatizo casado com uma mulher linda, levando-o a matá-lo (oh, já estou a estragar a filme àqueles que ainda não o viram), por julgar tratar-se de Aquiles, Brad Pitt, primo do pior actor do mundo.
Em matéria de cinema, o meu calcanhar-de-Aquiles são os épicos passados na antiguidade clássica. Ben Hur, Cleópatra, Spartacus até aos filmes de cartão (vulgo Peplum), onde os mitos gregos começaram por ser contados a 24 fotogramas por segundo. Num fim-de-semana cheio, este foi um dos finais possíveis.
Pelo meio, constatei que Quentin Tarantino e Morrissey estão a ficar muito parecidos. Fisicamente, pois, já que quanto ao resto, enquanto um sobe o outro desce. Não para muito baixo, pois you are the Quarry é um bom disco, um dos melhores dos últimos quatro meses, do qual irei gostar mais à medida que o tempo for passando. O problema é que, de bons discos está o mundo cheio. Eu perdoo-lhe, como ele perdoou Jesus e Jesus nos perdoa a todos, e mais agradeço a Tarantino por ter sido tão generoso nos inúmeros planos dos pés de Uma Thurman.
Kill Bill vol. 1 é uma obra-prima, disse-o logo que o vi, Kill Bill vol. 2, enquanto parte de Kill Bill, é também uma obra-prima. Mas Tarantino não está em foco apenas por causa do vol. 2. Está ainda por ser - ou ter sido, que a coisa já acabou - o presidente do júri do festival de Cannes. Os Cahiers du Cinéma, depois de um número maçador (589) onde se falou do estado do cinema no mundo (e onde o nosso - dos portugueses - Francisco Ferreira escreve um artigo de duas páginas, praticamente todo dedicado a dizer mal do Governo – os subsídios, as leis do audiovisual, as guerras indústria vs. autor, o costume), voltam com um grande número especial Cannes 2004. Os novos filmes de Almodôvar, Wong Kar-Wai, Godard, Kiarostami; um óptimo artigo sobre a nova e alargada versão de The Big Red One do subestimado Samuel Fuller. Mas não era sobre os Cahiers que eu queria falar. Quero falar de Tarantino, muito elogiado, não nos Cahiers, mas nos Inrockuptibles (estes franceses e a mania de fazer boas revistas). Num artigo de Serge Kaganski, Tarantino é apresentado como o Ás que completa o poker maior do cinema americano de hoje. Os outros são Cronenberg, Eastwood e Lynch, e eu não podia estar mais de acordo. Tarantino, diz Kaganski, tem, enquanto júri, uma vantagem sobre aqueles três: é um apaixonado por cinema e um adorador multifacetado, polivalente, eclético, de filmes. Conhece tão bem Hawks como o gore italiano, os westerns spaguetti como a nouvelle vague, a série z americana como a porrada acrobática que vêm de Hong-Kong, concluindo que Tarantino é o homem certo para fazer swingar Cannes. Também pensei nisso quando li o artigo na semana passada. Mas, pensei mal.
Estou-me nas tintas para que Michael Moore seja um alucinado, um anti-bush primário, e tente difundir uma montanha de mentiras. O que não consigo é conformar-me com o facto de a Palma de Ouro ter sido dada a um "documentário". Cannes é o maior e o melhor festival de cinema do Mundo. É o festival dos Godards, dos Bergmans, dos Viscontis, dos Kurosawas, dos Coppollas, dos Lynches, dos Wenders, dos Tarantinos. Não é Sundance. Não é San Sabastian. Não é Tróia. Não pode fazer estas figuras. Não devia fazê-las, já que este ano as fez. Lutem contra a guerra, votem contra Bush, façam politica, premeiem o primo do pior actor do mundo, mas não dêem a Palma a um documentário. Já estou a ver os Barnabés a escrever não sei quantos posts sobre Fahrenheit 9/11 (Na terra da liberdade [imagem da bandeira americana] escreve-se com um lápis azul [cartaz do documentário riscado de azul]), a fazer não sei quantas perguntas incriminatórias (De quem tem medo o homem mais poderoso do mundo? [por baixo, uma imagem da carantonha de Michael Moore]), a apontar todos aqueles dedos (ele é burro [cara do Bush com ar de burro], mas sabia! [imagem das torres a arder]) e a maçar-nos com os desafios estafados do costume (Digam lá, de uma vez por todas, quem é a favor da censura!), mas nada disso me chateia. Chateia-me, e muito, é que a palma tenha ido para um documentário. Para um documentário, irra.
No meio disto tudo, ainda não tive tempo para dizer, aqui, que o maradona é o Lester Bangs dos Blogs. O Frank Zappa dos Blogs; o Ornette Coleman dos Blogs; o Maradona dos Blogs. E não digo isto por ele ter feito uns links simpáticos para aqui, digo-o porque me apetece e porque acho. Como tudo o que aqui escrevo.
Houve (como diria Artur, o Jorge) muitas coisas bonitas neste fim-de-semana, e houve, também, outras menos bonitas. Parece, porque não vi, que o congresso do PSD foi uma chatice. Não houve golpe de teatro, o circo não pegou fogo e Santana não fez nenhum número (parece que nem sequer a maior ovação conseguiu arrancar), mas lá inventou mais uma das suas teorias de bolso para fazer figura nas notícias. Lembro-me do tempo (que há-de voltar, que há-de voltar) em que não saía de casa para ficar a ver na televisão os congressos do PSD. Agora, até para ir para Palmela saio. Para Palmela, irra.
Não falo, nem da boda, nem de Najafa, nem de Moqtada al Sadr, nem de Nassiria, nem de Faluja, nem de Abu Ghraib, nem do Sporting. Só de uma maçadora ida a Palmela - que me desculpem os meus queridos amigos RAP (que não esse) e Inês, companhias super agradáveis e excelentes na ajuda à muda de um pneu – para inventar pistas e escolher menus, com passagem pela baixa de Setúbal, pela esplanada de um McDonalds, onde foram vistas várias miúdas que, perante Troia, soltariam uma risada marota à primeira imagem do caparro bodybuilder do primo do pior actor do mundo.
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