4.27.2004

Brown Bunny, Mullholland Drive, e a obscura metamorfose do gosto

Comecei por gostar muito dos dois antes sequer de os ver, porém, ambos acabaram por me desiludir à primeira vista. Em ambos os casos, senti-me enganado, frustrado, traído por os ter defendido e eles terem-me aldrabado. Em ambos os casos, a seguir a vê-los, exclamei: que merda é esta!
Acontece que, alguns dias depois de vê-los, comecei a lembrar-me deles como outros filmes, diferentes dos que havia visto. Bons filmes. Grandes filmes. Pouco a pouco, os maus momentos passados na sala de cinema foram sendo substituídos por uma sensação de dever cumprido, à qual se seguiu a alegria por descobrir ter valido a pena cumprir o dever. Os momentos desagradáveis passaram a ser lembrados como momentos de prazer, aquilo que antes parecia estúpido tornou-se poético e o sentido que faltava foi encontrado.
Brown Bunny e Mullholland Drive são, cada um à sua maneira, pesadelos difíceis de ter. Mas, tal como os pesadelos mais fortes, marcantes e recorrentes, os ‘nossos’ pesadelos, aqueles que nos pertencem por não nos acontecerem ao acaso, depois de passados provocam as mais intensas recordações, as melhores recordações. Às tantas, ficamos (eu, pelo menos, fico) sem saber se aquilo de que nos lembramos foi sonhado, quantas vezes foi sonhado, ou de facto aconteceu, nesta, noutra ou em nenhuma encarnação. São filmes que ficam como refúgios da memória onde apetece voltar. Não aos filmes, mas aos resquícios que vão deixando. São filmes que nos satisfazem quando não estamos a vê-los: antes, porque suscitam o prazer de ainda os poder pela primeira vez vir a ver; depois, porque passamos a viver com eles. E num belo dia, ou num feio dia, acordamos e constatamos que também aqueles filmes que havíamos detestado podem tornar-se nos filmes das nossas vidas.
Site Meter